rua das sombras
Ainda nas primeiras horas da noite no bairro do Riachuelo, alguém tocava a campainha para que fôssemos à festa da rua. Éramos todos dez anos mais jovens: minha mãe, minha tia, minhas primas, o apartamento 201, os vizinhos, as fachadas dos casarões da frente. Em junho — ou, para o terror dos puristas, julho — a festa acontecia durante quatro finais de semana, toda sexta, sábado e domingo, de uma ponta à outra da Rua Vitor Meireles.
Em anos de fartura, os organizadores contratavam DJs e vigias, montavam palco para grupos de funk e axé se apresentarem, as crianças dançavam quadrilha. Nos períodos mais difíceis, moradores contribuíam com o quanto pudessem para uma vaquinha que ajudava a alugar ao menos um som para a festa, cama elástica, tobogã inflável com piscina de bolinhas. Sendo como fosse, algumas coisas não mudavam: na primeira esquina, do lado direito, estaria a clássica barraca de cocadas, montada por uma família que vinha da Bahia e passava o mês dormindo ali dentro mesmo, na companhia das abelhas. Subindo a rua pela mesma calçada, a barraca de batidas coloridas, coquetéis de frutas com licor batizados de Capeta, Beijo na Boca, Overdose, Viagra. Poucos passos dali, o portão verde musgo da vila em que uma senhora alugava o banheiro da própria casa a cinquenta centavos por uso. Na base da confiança ficava acordado que, em caso de cocô, o valor era acrescido de um real. Para fins de controle, o papel higiênico não ficava no banheiro e sim na mão da senhora, que por sua vez não arredava o pé do portão, observado a festa inteira com um cigarro aceso no canto da boca. A equação era exata. Mulher + xixi = cinquenta centavos e duas voltas de papel higiênico ao redor da mão. Homem + xixi = cinquenta centavos e nenhum papel. Mulher ou Homem + cocô = um real e cinquenta centavos + quatro voltas folgadas de papel ao redor da mão. Com o desenrolar dos anos e a mudança dos cargos na Prefeitura, passou a ser obrigatório que eventos de rua tivessem pelo menos dois banheiros químicos, uma novidade que não abalou a senhora e tampouco a clientela fiel à tradição do xixi no banheiro da vila.
Pensar que a vida corre enquanto falo desses detalhes que não valem nada é aflitivo. Porém, sem aquele exagero de festa e milho-verde cozido e salsichão na brasa e paçoca e anarriê eu não faço ideia de onde puxaria boas memórias ao longo de junho e julho deste ano. Uma década depois. Lembrança não enche barriga mas sustenta outras fomes da gente.
É gostoso estar à vontade, desfrutar da liberdade de ser alegre num lugar tão familiar. A festa da rua era um símbolo, ponto de encontro entre as gerações do bairro. Os mais velhos ocupavam as mesinhas da barraca de caldos, famílias juntavam mesas ao lado da barraca do churrasquinho porque dali conseguiam observar as crianças na barraca da pescaria. Os jovens zanzavam a noite toda, desfilando a independência, o desejo e os sussurros que precederiam gargalhadas de embriaguez. Eu me incluo nessa. Junto de minhas primas e amigas, já aproveitei a festa com namorado, amor platônico e coração partido, já enviei e recebi declarações pelo Correio Elegante — quase sempre secretas, as mensagens eram lidas no microfone para pulverizar enigmas em todos. Também vi minha tia viver um amor de verão no inverno porque as altas temperaturas no subúrbio do Rio de Janeiro permitem a licença poética. Dançamos, rimos de nós mesmas e fofocamos sobre a vida dos outros sem qualquer pretensão de lembrar ou dar importância no dia seguinte. Quem estava devendo quem, quem brigou com quem, quem traiu quem, novos casais, ex-casais, quem estava reformando a casa, quem estava devendo agiota, quem não pagava o condomínio há meses. Hoje, essas informações não são mais que um vulto na memória, salvo raríssimas exceções.
Ao rever os personagens dessa época, percebo o carimbo calado dos anos. Tenho minhas dúvidas se a mão do tempo é leve. De maneira geral, os homens têm rugas ao redor dos olhos, deixaram crescer as barbas e preenchem o recheio das camisas com barriguinhas salientes. As mulheres, quase todas, optam por cabelos mais curtos, preferem sapatos baixos e têm as ancas alargadas de parir. Todos diferentes, vivendo sobrepostos à imagem daqueles que não deixaram de ser, os que vestiam as melhores roupas para festejar no próprio quintal. Basta que nossas esquinas se cruzem e lá vêm as memórias, as velhas besteiras, as piadas e os apelidos requentados: você lembra de quando a fulana... sim, chamávamos ele de... você nunca... pior você que vivia dizendo... isso foi quando, 2008?... você tinha até cabelo... não, isso foi com o ciclano lá do... nessa época eu ainda nem conhecia o beltrano, etc.
Sabemos que estamos falando de outras pessoas, versões de nós. Fomos aqueles, presos num período em que os amigos e amores pareciam durar para sempre, as contas chegavam endereçadas a outros nomes, os joelhos seriam fortes, as noites longas e a coluna firme até o fim. Não sei se sou menos ou mais agradável do que recordam, se aos olhos deles o tempo me fez bem, se lhes pareço burra, mais baixa ou menos solta. Na companhia deles sei que sou duas, esta e aquela guardada nos flashs que sobraram de junhos atrás. É a minha sombra encontrando outras sombras, esquentamos as lembranças que temos uns dos outros na faísca do que já foi uma fogueira de São João.
Me agarro aos brindes, passos sincronizados, copinhos de caldo verde aquecendo as mãos e olhares apaixonados que atravessavam a rua desacompanhados de qualquer palavra; me agarro à pista abarrotada de gente, de música, rua aberta ao público, rua fechada para os carros, meus pais com mais tempo, menos cabelos brancos e saúde forte. Gostaria de ter sido uma testemunha menos distraída daquela felicidade tão boba. Relaxo por saber que essa angústia, tal qual a morte, é exclusividade de quem vive.
ilustração: Rene Wiley
sutilezas atômicas: miudezas que mudam o mundo
E você, gosta de festa junina? Está com saudades?
Minha lembrança de julho de 2021 tem um sabor bem diferente das comidas típicas, um gosto de esperança que estava muito mais difícil de resgatar do que as memórias de uma década atrás: fui vacinada com a 1ª dose! ❤ Além de mim, muitos amigos, familiares, alunos... cada vez mais. Não há uma foto que passe pelo meu feed sem ser curtida e preferencialmente comentada com bastante empolgação. Eu não quero acostumar e muito menos esquecer dos milhares que não tiveram essa oportunidade. Não podemos esquecer.

Como passei três dias contornando os efeitos colaterais severos que tive com a vacina (que são ínfimos perto da alegria e da empolgação para segunda dose), precisei adiar a mini oficina de Cartas de Amor, atrasei leituras e apontamentos dos exercícios da Oficina Escritas de Mim e várias outras demandas de trabalho. Portanto, serei breve nas indicações, tá?
Começo te convidando para me contar suas memórias da época que — na minha humilde opinião — é a melhor do ano. Vamos falar de festa junina, lembranças, reencontros com o passado e o papel das memórias em nossas vidas? Participe do Clube de Leitura do Sutilezas! O primeiro deles será amanhã, dia 29, e o outro no próximo domingo, dia 01. Se você ainda não sabe, nos Clubes a gente se encontra para bater papo sobre o tema do conto ou da crônica que você lê aqui no e-mail. Uma conversa informal, excelente para distrair, refletir e experienciar um momento coletivo bastante acolhedor.

Anima me fazer companhia? Então preencha o formulário e reserve sua vaga de amanhã ou preencha o formulário para reservar sua vaga no dia 01. O valor da colaboração é de R$20, assim, de quebra você ainda apoia o meu trabalho de escrita e produção de conteúdo. (Se você é assinante do Clube Sutilezas, basta sinalizar no formulário e tudo certo) ❤ Enfatizo a importância da participação no Clube se você gosta do que escrevo, do conteúdo que compartilho aqui e no meu perfil do Instagram. Sei que está todo mundo um tanto exausto de Zoom, lives, telas e mediações online, mas os encontros são extremamente importantes para que a nossa troca seja mais rica e profunda.
Seguimos!
Falando em cartas, dia desses fiquei sabendo da ação Mi Casa, Tu Casa, que convida jovens de todo o Brasil a doar livros e escrever para refugiados venezuelanos abrigados em Roraima (De acordo com o Comitê Nacional ara Refugiados, o Brasil já recebeu cerca de 60 mil pessoas refugiadas, dentre elas, 46 mil da Venezuela). Este é um projeto desenvolvido pelo Joca — jornal voltado ao público infantojuvenil — junto com o Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ANCUR) e a organização Hands On Human Rights. Além de acolhimento e quebra de muitos preconceitos, essas cartas facilitam a introdução à língua portuguesa e estimulam o intercâmbio das culturas entre os pequenos.

Conhece alguma criança que pode se empolgar para escrever? Acesse o site para saber como enviar a carta! Eles também aceitam doações de livros infantojuvenis, novos ou seminovos em português e espanhol.
Se você ainda não viu, recomendo o post da Bienal de São Paulo que conta sobre Arseniy Kotov e a cidade de Voturka, na Rússia. Voturka ficou conhecida como cidade fantasma porque perdeu 35 mil habitantes em virtude do frio (que chega a - 45º!) e Arseniy Kotov é um fotógrafo que resolveu ficar pela região e retratar a arquitetura. Veja só que coisa assustadora e fascinante ao mesmo tempo:

Fiquei bastante encantada pelas fotos, pesquisei mais sobre Voturka e acabei conhecendo também as fotos belíssimas do Ian Iavrinovich:
Brinquei com meu marido, Boris (olha só, um nome russo!), dizendo que me adaptaria fácil ao lugar, já que ele é capricorniano e estou bastante acostumada a viver num coração de gelo. Hahaha!
(Aproveito as fotos para lembrar que os meteorologistas estão alertando a todos para uma onda de frio intensa nos próximos dias. Se você puder doar agasalhos e cobertores em organizações da sua cidade, tenha certeza de que serão muito bem-vindos. Em parceria em a Cruz Vermelha, sei que São Paulo oferecerá 5 mil pratos de sopa por noite e 3,2 toneladas de agasalhos e cobertores. No site do G1 tem uma lista dos pontos de doação. No Rio, o Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras) distribuirá os mesmos itens no Largo da Carioca. Para colaborar é só acessar o site deles ou entrar em contato pelo WhatsApp (21) 96927-9888.)
Neste mês tive o prazer de me deliciar com o lançamento tão esperado da minha poeta contemporânea favorita: Ana Martins Marques com o livro Risque Esta Palavra. Sou péssima em elencar qualquer coisa, então escolhi dois (dos muitos!) poemas que mais gostei para compartilhar com você. Me guiei pelo tema da crônica desta newsletter pois acho que eles todos conversam bem:
(poema sem título)
“É como se a infância não fosse um tempo
mas um lugar
com seus cumes seus esconderijos
suas pequenas clareiras
um lugar, aquele onde cometemos
nosso primeiro crime
há quem tenha matado um coelho
há quem tenha matado um sapo
há quem tenha matado um cão
há quem tenha mentido perseguido
destroçado
deixado morrer
por capricho
de minha parte matei uma criança:
uma menina
morreu em mim
por onde vou carrego
o seu cadáver
e a forma exata do seu corpo
repousa no meu corpo
como num vestido
largo demais.”
-
(poema sem título)
"Nunca é fácil
abandonar o que se ama
vê: toda estação
é uma espécie de serralheria
aqui se cortam
pessoas ao meio
se fosse possível
ir e ficar
depois poderíamos
contar a nós mesmos
sobre nossa própria vida
nos encontraríamos
simultaneamente
mais gordos e mais magros
antes e depois do divórcio
os filhos que tivemos confraternizariam
com os que acabamos por não ter
amaríamos profundamente o homem ou a mulher
de quem já mal nos lembramos
teríamos ao mesmo tempo uma coleção de mapas
e uma horta
dormiríamos em hotéis
e no nosso quarto de infância
Mas não é assim."
Lindos, né? Um pouco do que somos, fomos e jamais deixaremos de ser, um pouco do que escolhemos e tudo aquilo de que automaticamente abrimos mão ao fazê-lo... Esses pensamentos têm me feito companhia ao longo do mês inteirinho e agora espero que sejam boa companhia por aí também. Quem é a pessoa que você não foi? Como é o seu quase, como é quem você poderia ter sido? Existem respostas para essas perguntas?
Por fim, uma galera vem perguntando desde março e resolvi oferecer a aula avulsa de Microcontos em agosto! Assim como em todas aulas, procuro trabalhar o conteúdo do jeito mais democrático possível para que todo mundo possa participar: quem já escreve, quem nunca escreveu, quem está na lista de espera da minha Oficina e curiosos em geral! Muito além de aprender a identificar microcontos (que são diferentes de ditados, piadas, citações, aforismos e frases soltas), nesta aula falo sobre a importância da concisão e da precisão na escrita. Portanto, se você costuma ter uma comunicação mais prolixa e sente dificuldade de resumir histórias ou pensamentos, pode tirar bastante proveito das provocações desse encontro. Vai ser legal, isso eu garanto.
Anima? Conhece alguém que pode gostar? Então confira as informações, conta para os amigxs e envie uma mensagem para Conceição reservar sua vaga.
"— Ouça, Virgínia, é preciso amar o inútil. Criar pombos sem pensar em comê-los, plantar roseiras sem pensar em colher rosas, escrever sem pensar em publicar, fazer coisas assim sem esperar nada em troca. A distância mais curta entre dois pontos pode ser a linha reta, mas é nos caminhos curvos que se encontram as melhores coisas. Este céu que nem promete chuva… Aquela estrelinha que esta nascendo ali… Está vendo aquela estrelinha? Há milênios não tem feito nada, não guiou os Reis Magos, nem os pastores, nem os marinheiros perdidos. Não fez nada. Apenas brilha. Ninguém repara nela porque é uma estrela inútil. Pois é preciso amar o inútil porque no inútil esta a beleza. No inútil também está Deus. Virginia apertou o ramo de rosas contra o peito: — Inútil é o amor que eu tenho por você - quis dizer-lhe. Não disse."
(livro: Ciranda de Pedra - autora: Lygia Fagundes Telles)
Por hoje, é isso! Espero que tenha gostado da visita virtual e que se anime para os convites.
Um beijo carinhoso e muito obrigada pela atenção! ❤
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